segunda-feira, 27 de julho de 2020

Meu caro blog, até já!

Meu caro blog:

Estou muito doente.

As coisas que mais me arrepiam na vida – médicos, enfermeiros, urgências, análises, TAC, tubos de látex a entrar no corpo, etc. – tudo isso tem ocupado os meus dias.

O pior de tudo é que os médicos ainda não acertaram com o protocolo terapêutico que eu devo seguir.

Tenho passado uns momentos complicados.

Peço a Deus e Nossa Senhora que o pior já tenha passado. Não quero reviver os momentos de desespero por que passei.

Olha blog: quando tudo parece estar bem, nós vemos mundo como algo incomensurável, cheio de coisas fantásticas e então nós buscamos a proximidade com as mais aprazíveis e afectuosas… num ápice, o mundo torna-se do tamanho do nosso quarto, nada interessam as coisas do exterior, até podemos perder tudo que isso não nos afecta, pouco importam os sucessos e as vitórias, porque nós queremos, apenas, não sofrer – eu entrei nesse buraco.

Para ser sincero, agora e mais do que nunca, tenho medo de ser contaminado pelo coronavírus - creio que não resistiria.

Com uma boa dose de optimismo, até já, blog!

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Naquela segunda-feira estive perto do paraíso, vi a minha “celestial diva”…

Meu caro blog: Calei-me subitamente. Faltava-me ânimo para reviver a lembrança desse dia 06/07 de 198x. Recordar significa, antes de mais, ter de aceitar a minha infinita pequenez (ou o complexo de inferioridade) que me levou a perder tudo o que mais desejava, a viver uma vida vã e inútil, a esbanjar a minha existência.

Continuando…

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Nessa segunda-feira, tórrida e inesquecível, decididamente tinha de voltar a ver a minha “arrebatadora visão”, aquela encantadora e inebriante “diva” que, desde que me cruzei com ela, ocupava todos os recantos da minha existência. Não era apenas omnipresente, era também a única maravilha do todo universo que eu desejava ver, aproximar-me… venerar!

Estive de plantão à paragem do autocarro, com a mesma atenção de um soldado na frente de guerra.

Não sei se esperei tempo infindo ou se o tempo que lá permaneci, por pouco que fosse, converteu-se, para mim, numa eternidade.

Durante esse tempo de angustiante espera, foi variando o meu estado de espírito: ora angustiado com a quase-certeza de que ela não pareceria, ora suplicante a Deus, a todos os Santos e deidades que concebessem o milagre dela aparecer.

Fosse porque as minhas preces foram ouvidas ou fosse por mero acaso, eis o momento esperado – a minha “divinal e encantadora visão” reapareceu.

Por triste fado meu, sempre assim foi e receio que sempre assim será, cada rosa está resguardada por um molho de espinhos, ou seja, a minha “celestial diva” estava acompanhada.

Queria eu ter capacidade bastante para verter em palavras o que eu senti no exacto momento em que a vi. Meu Deus, que sensação!... Todo o meu corpo foi percorrido por uma torrente de energia que, simultaneamente, arrepiava e queimava, vivificava e me deixava prostrado e paralisado, era a melhor sensação eu já tinha vivido e, ao mesmo tempo, a mais aflitiva das impressões.

Só de vê-la já estava cumprida a maior alegria que poderia receber. Bastava ter a oportunidade de a ver de longe, mesmo com a certeza de que ela nem me viu, não sabia que eu existo, muito menos poderia imaginar o efeito que tinha em mim.

Todo o universo parou. À minha volta não existia nada nem ninguém.

Segui-a de longe, mas não fui capaz de me aproximar. Acabei por perdê-la no turbilhão do vaivém de pessoas que enchiam o passeio e a avenida, porque eu estava num estado quase hipnótico – chocava com tudo e com todos… Porém, não era importante segui-la. Vi-a, isso era tudo o que eu mais queria, o maior privilégio divino, a maior dádiva de Deus.

Por ali andei, errante, procurando-a ao longe, vagueando em sonhos, entre o purgatório da minha incapacidade de me aproximar e o idílico milagre de poder olhar para ela.

Que beleza! Que harmonia! Que divindade!

Era, de certeza, a mais especial, a mais encantadora, a mais divinal de todas as mulheres do Universo.

Por ali caminhei, nas nuvens e aos encontrões, com o coração dividido: ora a explodir de alegria pela felicidade de a reencontrar e poder confirmar que o Xico estava certo (e era ela mesmo que eu procurava), ora flagelado pela sensação de que seria impossível aproximar-me dela.

Ela era perfeita.

Eu não a mereceria. Sentia-me tão pequenino, minúsculo e insignificante, desajeitado e indigno de me aproximar dela.

Ela nunca poderia ser minha. Era demasiado “boa” para mim.

Mesmo assim, faltava agora poder tentar aproximar-me dela…

Por mero acaso vi o seu irmão mais velho (que eu conheci, sem saber que eram irmãos) entrar no autocarro. Decidi regressar no mesmo autocarro. Se era irmão dela, era importantíssimo. De simples anónimo e comum mortal, também ele foi automaticamente promovido a VIP!…

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segunda-feira, 6 de julho de 2020

Quando se fecha uma porta, Deus abre uma janela…

Caro blog: Hoje fui à feira da minha terra. Apesar das diferenças geradas pelo distância no tempo e pela pandemia, não passei sem recordar (quase reviver) as sensações do episódio real que estava a pensar narrar. Tenho tão presentes os factos ocorridos nessa data que achei melhor não o fazer. Fica para outro dia. 

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Na prossecução da minha narrativa, havia quedado à porta da minha “diva”, mergulhado na mais amargurada e dolorosa decepção.   

O Xico, porém, astucioso e atento, não tardou em descobrir uma janela de esperança que pudesse gerar um paliativo para o meu estado de desilusão. 

Uma das tradições da minha terra natal era (e ainda é, embora em grau muito reduzido) a ida à feira quinzenal. Nesse tempo, da parte da tarde a feira funcionava como o grande ponto de encontro da juventude de todo o concelho. Num município eminentemente rural e com meia centena de freguesias, as moçoilas e os rapazes rumavam à feira com a mesma predisposição com que se vai a um concerto, a uma festa social ou a um espectáculo cultural. Ainda hoje, em algumas freguesias, há pequenas empresas que facilitam a ausência dos seus funcionários em dia de feira.

Por uma questão de integração social, também eu participava dessa praxis juvenil, embora de forma pouco assídua.

Não padeço de oclofobia, mas sempre apreciei muito mais o convívio dentro de um limitado grupo de amigos, tranquilo e pacífico, onde todos se entendem e podem compartir, positiva e democraticamente, as suas singularidades. Grandes aglomerações de pessoas, muito ruído ou falta de espaço não me cativam. Sempre entendi que para conviver é indispensável comunicar. Gosto imenso de conversar, compartir o pouco que sei, aprender com os demais e disfrutar da companhia dos que me são próximos ou caros em afeição. 

Além de tudo isso, ocupava os tempos livres com hobbies de cariz bastante mais construtivo e enriquecedor. 

Voltando aos factos...

Tudo mudou quando o Xico disse: «Eureka!... A Isabel vai à feira amanhã, de certeza!... Só não a encontras se não quiseres.»

Eis que voltou a brilhar o sol na tenebrosa penumbra que enegrecia a minha aura. 

Por impedimentos inadiáveis, o Xico não podia ir à feira e eu já tinha ajustado outros compromissos, improteláveis e relevantes.

Fosse como fosse, a feira tornou-se o centro das prioridades, o mais desejado e importante evento do universo.

Bastou isso para revitalizar a alma e o corpo, voltar a casa encorajado e com a persuasão heróica de um oficial romano – tão pronto para a luta como desejoso por lutar.

Regressei directamente a casa.

Essa noite pareceu-me interminável. Ansioso e imaginando mil um cenários para o dia seguinte, praticamente não consegui dormir.

Decidi esquecer todos os afazeres e compromissos… nada tinha relevância, urgência ou valor que pudesse rivalizar com o privilégio (e o sonho) de rever aquela divinal musa.

Eis que, enfim, chega essa segunda-feira -  faz hoje anos –, dia 06/07/198x.

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domingo, 5 de julho de 2020

Viagem às portas do paraíso... onde imperava a minha " celestial diva"...

Caro blog: Eu devo estar a usar um português paupérrimo, talvez ninguém entenda o que escrevo... é que, ainda tenho dificuldade de reviver estes momentos


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Eis-me, finalmente, chegado ao Domingo, na cronologia (e, por que não dizer, na cronografia, uma vez que o tempo se funde com os factos) do meu relato. Nunca a expressão “dia santificado” teve tanto significado. 

Faz hoje anos... era o dia 5 de Julho de 198x.

 À hora que havíamos ajustado lá estava eu na casa do Xico. Eu ia ansioso mas pouco convencido. Em bom rigor, eu sempre me persuadi que não tenho direito a grandes mercês da sorte.

 O Xico não me havia revelado nada de muito objectivo sobre a morada da minha “semideusa”.

Agora, porém, e para descartar as nossas formas de transporte disponíveis - bicicleta e motorizada -, começou por localizar o pedacinho de paraíso onde a minha "diva", radiantemente, reinava. Baralhava tudo. Aquele rapaz sempre foi uma desgraça no que respeita a dar informações! (A propósito disso, ainda um dia conterei um situação passada com ele e que eu testemunhei…)

Então, foi ele a propor que fossemos a pé porque ela morava na freguesia vizinha. Seriam, quando muito, três quilómetros e, acrescentou ele, «há grandes vantagens em irmos a pé: “controlamos” as miúdas, podemos conversar sem problemas… enfim, só vantagens!»

Para mim, a grande desvantagem era o calor infernal de um dia de puro Verão. Porém, dada a urgência e a importância da jornada, eu estava pronto a todas as adversidades, mesmo que fosse para uma peregrinação a Santiago Compostela.

 Seguimos jornada. Como bons aldeãos, treinados nas agrestes lides campesinas, estávamos dotados de uma resistência digna de um militar das tropas de elite e de uma capacidade de resiliência quase sobrenatural. Os dois havíamos nascido e crescido numa aldeia pacata, alegre e feliz. Depois da Páscoa começava a época das festas. Era muito raro o fim-de-semana sem festa, romaria ou simples bailarico.

 Retomando o caminho seguido, juntamente com o meu amigo Xico, nesse dia de Julho dos inícios da década de oitenta, eis-me completamente incrédulo: eu estava dentro do “meu território”, não estava em local que eu desconhecesse em absoluto, mas nas minhas deambulações da semana anterior não me ocorrera seguir esse trajecto.

Três coca-colas depois, ou seja, passados três cafés, entramos num estreito carreiro “de pé-posto”, muito polido pelo intenso trânsito pedonal, servia, inclusive, de atalho para uma concorrida feira quinzenal. Era no seguimento dessa estreita vereda que se situava o pedacinho de Olimpo onde vivia a minha inigualável e celestial "diva". 

Eis-me chegado.

Quando o Xico disse “é aqui!”, eu entrei num estado que não sei qualificar – senti-me todo arrepiado, com “pele de galinha”, assolado uma sensação de suor frio enquanto uma forte pontada saía no peito e percorria todo o corpo, dissipando-se a custo e com uma forte sensação de formigueiro, nas mãos e nos pés. Entrei numa espécie de transe, não sentia os pés no chão, o mundo desapareceu em meu redor, agia por instinto, sem autonomia e incapaz de articular palavras com nexo. Por instantes deixei de saber onde estava, quem era e o que fazia ali.

Ocorreram, então, lapsos de tempo em que fiquei completamente bloqueado. Parecia que o meu espírito (a minha mente) e o meu corpo se haviam separado.      

Na minha vida não me recordo de igual momento em que me sentisse tão incapacitado, tão débil, tão estranhamente perdido e sem saber o que fazer.

Estive assim, “em transe”, uns minutos.  

Quando “regressei a mim”, estava o Xico a tentar sentar-me, entre bofetadas e abanões… recordo-me apenas desta frase dele: “Eh pá!... Foda-se!... Fala!...”

Não quis dar parte de fraco e, apelando os meus dotes de actor, disse qualquer coisa do género: “consegui enganar-te e assustar-te!”

Levantei-me lentamente e tentei defrontar a situação.

O quintal (e a casa) dela tinha (e tem) a particularidade de ter acesso público em todo o seu perímetro. Podia, por isso, circundar todo o “ seu mundo”.

Com o coração desafiar o rendimento extremo de um motor de fórmula 1, todo o corpo preparado para sofrer o impacto de um raio eléctrico de elevada potência e voltagem, à espera receber uma nova sensação inibidora de todas as minhas reacções vitais,  racionais e instintivas, circundei duas vezes o quintal, num acto quase de adoração. Não sei se o Xico disse algo. Se falou, eu não ouvi nada.

Como um submisso vassalo, rondei “o paço da suprema princesa”; como um crente, senti-me a venerar uma entidade celestial.

Nada! A casa estava completamente silenciosa, fechada, deserta.

Procurei uma sombra e fiquei (ficamos, porque o meu "compincha" teve de me acompanhar ou então regressava sozinho) ali, sentado, como o ar compenetrado e contrito de um penitente, absorvido no recolhimento silencioso de um devoto peregrino.  

Oh desilusão!... Não podia receber maior decepção, uma penalização mais pesada, um golpe mais incisivo.

Porquê, meu Deus, tal castigo? Porquê esta falta de sorte? Porquê?...

Trocava tudo por vê-la… eu necessitava ver essa semideusa chamada Isabel, imperiosa e desesperadamente!

Desapontado, vencido e completamente de rastos, não derramei lágrimas mas chorei de forma sufocada no mais profundo do meu peito.

Vendo a minha cara de desilusão, o Xico teve uma (mais uma) brilhante ideia.

 

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quarta-feira, 1 de julho de 2020

Entre a incerteza e o tormento da ansiedade...

Caro blog: Hoje sinto-me excessivamente abatido. Sinto-me debilitado no corpo e na alma. Vejo que nasci e vivi no tempo errado. Aquilo que era quase impossível no meu tempo, hoje é tudo tão fácil! Só tenho esta vida… e, por infortúnio, foi-me dada num tempo em que se tornou estéril, miserável, inútil…   

… Continuando…


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Retomo a minha narrativa no ponto em que havia montado guarda à porta do Xico. 

Com a determinação do mais destemido mestre d’armas, com a coragem de um guerreiro e com uma ousadia que ofuscava a valentia do Santo Condestável, não arredaria pés dali sem saber algo de substancial sobre a “minha diva”.

Parece que a sorte protege os pertinazes e, quiçá, esteja mais do lado dos obstinados do que dos apaixonados. Pela minha obstinação merecia ser compensado com alguma ventura. O Xico chegou ao anoitecer. Trabalhava de padeiro, levantava-se pelas três da manhã, pois, rotativamente, ele e os colegas dividiam as noites de domingo para segunda-feira, já que, nessa idade e nessa época, o fim-de-semana era um tempo crítico e precioso. Por isso regressou cedo. 

Mal o avistei ao longe, pareceu-me que o mundo se iluminou e saí prestes ao seu encontro, com a ânsia do bíblico pai do filho pródigo. 

Embora o Xico estivesse um pouco agastado comigo, fruto da discussão dessa tarde, acedeu submeter-se à minha inquisitorial “entrevista” (eu bombardeava-o com perguntas, sem lhe dar folgo), a contragosto do padrasto. O padrasto era uma mal-azada figura, insuficientemente escanhoado, de tez crestada, com um ar de magrebino ressequido e recurvado, usava uns óculos desproporcionais e padecia de uma crónica falta de delicadeza no tom de voz. Falava "tripeiro típico" (era natural do Porto). Apesar disso, não o julgo por má pessoa.

Quase sem tempo para respirar, o Xico foi debitando as mais sublimes e desejadas palavras do mundo, para aquela ocasião. Para mim soavam como a mais melodiosa e encantadora sinfonia. Deleitava-me ouvi-lo dizer que sabia tudo o seu respeito: o nome, onde morava, a idade… até a alcunha de família e uma incrível coincidência - eu conhecia um irmão dela.

O Xico alegava ter passado com ela umas tardes e, dando-me razão, também ele achava que a ela era «uma miúda especial».

Questionei entusiasmado: «Xico, quando vais comigo até à casa dela?...»

Aqui residia um problema. Apenas poderia ir comigo no domingo seguinte.

Nas nossas aldeias, nessa época, não existia toponímica nas ruas e muito menos número de polícia (número de porta). Apenas existiam lugares. Contudo, ele não sabia o nome do lugar e, seguindo as informações que ele dava, eu não chegaria a lado nenhum.

Inconformado, restou-me aceitar que assim fosse, na certeza de que uma semana costumava passar depressa.

Mesmo assim, decidi fazer uma romagem à freguesia dela. Peregrino, qual Rei Mago que perdeu a estrela guia, seguia um percurso diário com um trajecto aleatório mas diferente, todos os dias dessa semana.

Não vi nada que se assemelhasse à descrição feita do Xico. Percebi, depois, que estive perto, mas a dislexia do meu compincha, trocando esquerda por direita, poente por nascente, baralhou completamente o meu sentido de orientação.  

Não consigo expressar muito bem a dificuldade que tive em passar essa semana. A ansiedade, a incerteza, os sonhos, a convulsão que me percorria o corpo quando a imaginava frente a mim, a sensação de calor que nascia no peito e percorria todo corpo quando recordava a sua figura, o desejo de vê-la, a constante incerteza, o tempo que passava tão vagarosamente, a insegurança que me atormentava pela quase certeza de que, na sua presença, seria possuído pelo pânico e não teria capacidade de reacção… enfim, tudo isto repetido na duração centúria de cada dia e no martírio infindo de cada noite.

Cancelei (nem sequer me lembrei) todos os meus “compromissos”. Pus de parte todos os colegas. Nada tinha interesse. Tudo era inútil, supérfluo e dispensável.

Não sei explicar porquê, mas sentia-me, cada vez mais, a pessoa mais ridícula e insignificante do mundo - ninguém tinha mais defeitos do que eu, ninguém tinha tão poucas qualidades e tão grande falta de virtudes.

Neste clima hostil de “estado de sítio” permanente, eis que a semana passa e, finalmente, chega o Domingo.  

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O primeiro efeito adverso da "minha diva" na minha história de vida...

Caro blog: Eu poderia omitir este episódio. Porém, o Xico foi crucial no desenvolvimento da história, neste e em muitos outros factos que, propositadamente, omitirei.

…Continuando

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Estávamos no Galocha e dizia eu que, naquele dia e naquele momento, “Vidi lumen regenerati spes mihi...” (Vi regenerada a luz da esperança, para mim … [no meu ferrugento latim]), com a Xico a identificar a minha “celestial diva”, através do retracto falado que eu acabava de fazer.

Modéstia à parte, nesse então eu tinha uma memória fotográfica e uma capacidade de descrição que bem justificavam a minha vontade de ser jornalista da rádio.

 Em abono da verdade, não foi uma coisa assim tão simples. Em primeiro lugar, imaginei que o Xico estivesse a galhofar comigo, o que era normal entre nós. Em segundo lugar, eu achava que também  conhecia todas as pessoas com quem ele se relacionava (socialmente e não só, porque não havia segredos entre nós) e, sobretudo, todas as “suas conquistas”.

Contudo, o Xico foi rotundo e directo: «Essa miúda que tu descreveste é a Isabel, tenho a mais absoluta certeza!»

Ante a minha incredulidade, ele foi ainda mais convincente: «Sei bem onde ela mora, não é muito longe, conheço a sua família e já passei umas boas tardes com ela… é uma miúda espectacular… mas para eu ser da altura dela necessitava usar um tijolo!...»

Então, tentei convencê-lo a falar tudo o que sabia sobre ela. Porém, ele, cauteloso e para evitar a separação do grupinho e perturbar a agenda desse dia, recusou-se a entrar em pormenores.

Claro que eu não cabia em mim de alegria, mas ficava-me o receio da desilusão. E se não fosse ela!?...  

Desafiei o Xico a irmos, sem mais delongas, ao encontro dela. Só que, infelizmente, nesse dia tínhamos um compromisso que, para os restantes membros do grupo, era inadiável e muito mais tentador. Para mim, procurar “a divinal e electrizante miúda” era o mais importante da vida. Estávamos num insanável conflito de interesses. Quase se gerava uma quezília séria e grave entre nós.

Como resultado da discórdia que se criou, decidi não acompanhar o grupinho nesse dia. Essa foi (apenas) a primeira complicação, a primeira alteração da minha vida, por causa dessa “diva” que, na realidade eu nem conhecia e tão-pouco tinha a certeza se era a pessoa de quem o Xico falava.

Eles partiram para a festa, como estava calendarizado. Eu, possesso e inflamado, quase a explodir de nervos, mas a tremer de emoção, regressei a casa.

Foi uma tarde longa e difícil. Sentia uma estranha secura na boca, uma sensação esquisita de calor que me percorria o tórax no sentido ascendente, o diafragma parecia ter perdido elasticidade, o cérebro parecia ter dilatado e provocava zumbidos nos ouvidos e palpitações nos olhos… Não estava bem sentado, nem deitado, nem em pé; se me levantava senti vontade de me sentar, mal m sentava via-me impelido a levantar-me e com vontade de ir, sem destino até encontrar essa divinal musa.

Custou-me aguentar a tarde toda em casa. Eu não podia esperar… necessitava saber mais coisas sobre a minha “diva”.

Vi-me possuído por uma ansiedade insuportável, por uma necessidade incontrolável de fazer algo que aliviasse a comoção desesperante que me acometia o peito.

Tentei dormir mas não consegui. Tudo me parecia irritante, doloroso e fora do seu lugar… Assim passei essa infindável tarde de domingo, esperando que anoitecesse. Ao cair da tarde fui colocar-me de sentinela à entrada da casa do Xico. Decididamente, não sairia de lá sem saber tudo sobre a minha “diva”, nem que para tal tivesse de esperar toda a noite.

Lá fiquei, tempo infindo e num estado em que cada minuto parecia estender-se por várias horas, até que, finalmente, o Xico surgiu ao  alcance da vista.

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