quarta-feira, 1 de julho de 2020

Entre a incerteza e o tormento da ansiedade...

Caro blog: Hoje sinto-me excessivamente abatido. Sinto-me debilitado no corpo e na alma. Vejo que nasci e vivi no tempo errado. Aquilo que era quase impossível no meu tempo, hoje é tudo tão fácil! Só tenho esta vida… e, por infortúnio, foi-me dada num tempo em que se tornou estéril, miserável, inútil…   

… Continuando…


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Retomo a minha narrativa no ponto em que havia montado guarda à porta do Xico. 

Com a determinação do mais destemido mestre d’armas, com a coragem de um guerreiro e com uma ousadia que ofuscava a valentia do Santo Condestável, não arredaria pés dali sem saber algo de substancial sobre a “minha diva”.

Parece que a sorte protege os pertinazes e, quiçá, esteja mais do lado dos obstinados do que dos apaixonados. Pela minha obstinação merecia ser compensado com alguma ventura. O Xico chegou ao anoitecer. Trabalhava de padeiro, levantava-se pelas três da manhã, pois, rotativamente, ele e os colegas dividiam as noites de domingo para segunda-feira, já que, nessa idade e nessa época, o fim-de-semana era um tempo crítico e precioso. Por isso regressou cedo. 

Mal o avistei ao longe, pareceu-me que o mundo se iluminou e saí prestes ao seu encontro, com a ânsia do bíblico pai do filho pródigo. 

Embora o Xico estivesse um pouco agastado comigo, fruto da discussão dessa tarde, acedeu submeter-se à minha inquisitorial “entrevista” (eu bombardeava-o com perguntas, sem lhe dar folgo), a contragosto do padrasto. O padrasto era uma mal-azada figura, insuficientemente escanhoado, de tez crestada, com um ar de magrebino ressequido e recurvado, usava uns óculos desproporcionais e padecia de uma crónica falta de delicadeza no tom de voz. Falava "tripeiro típico" (era natural do Porto). Apesar disso, não o julgo por má pessoa.

Quase sem tempo para respirar, o Xico foi debitando as mais sublimes e desejadas palavras do mundo, para aquela ocasião. Para mim soavam como a mais melodiosa e encantadora sinfonia. Deleitava-me ouvi-lo dizer que sabia tudo o seu respeito: o nome, onde morava, a idade… até a alcunha de família e uma incrível coincidência - eu conhecia um irmão dela.

O Xico alegava ter passado com ela umas tardes e, dando-me razão, também ele achava que a ela era «uma miúda especial».

Questionei entusiasmado: «Xico, quando vais comigo até à casa dela?...»

Aqui residia um problema. Apenas poderia ir comigo no domingo seguinte.

Nas nossas aldeias, nessa época, não existia toponímica nas ruas e muito menos número de polícia (número de porta). Apenas existiam lugares. Contudo, ele não sabia o nome do lugar e, seguindo as informações que ele dava, eu não chegaria a lado nenhum.

Inconformado, restou-me aceitar que assim fosse, na certeza de que uma semana costumava passar depressa.

Mesmo assim, decidi fazer uma romagem à freguesia dela. Peregrino, qual Rei Mago que perdeu a estrela guia, seguia um percurso diário com um trajecto aleatório mas diferente, todos os dias dessa semana.

Não vi nada que se assemelhasse à descrição feita do Xico. Percebi, depois, que estive perto, mas a dislexia do meu compincha, trocando esquerda por direita, poente por nascente, baralhou completamente o meu sentido de orientação.  

Não consigo expressar muito bem a dificuldade que tive em passar essa semana. A ansiedade, a incerteza, os sonhos, a convulsão que me percorria o corpo quando a imaginava frente a mim, a sensação de calor que nascia no peito e percorria todo corpo quando recordava a sua figura, o desejo de vê-la, a constante incerteza, o tempo que passava tão vagarosamente, a insegurança que me atormentava pela quase certeza de que, na sua presença, seria possuído pelo pânico e não teria capacidade de reacção… enfim, tudo isto repetido na duração centúria de cada dia e no martírio infindo de cada noite.

Cancelei (nem sequer me lembrei) todos os meus “compromissos”. Pus de parte todos os colegas. Nada tinha interesse. Tudo era inútil, supérfluo e dispensável.

Não sei explicar porquê, mas sentia-me, cada vez mais, a pessoa mais ridícula e insignificante do mundo - ninguém tinha mais defeitos do que eu, ninguém tinha tão poucas qualidades e tão grande falta de virtudes.

Neste clima hostil de “estado de sítio” permanente, eis que a semana passa e, finalmente, chega o Domingo.  

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…/…

2 comentários:

  1. Bom, e nós seguimos esperando também.....

    Tudo de bom

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  2. E vamos acompanhando a história.
    Abraço, saúde e bom fim de semana

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